sábado, 10 de novembro de 2007

ana maria machado disse...

Não tenho pressa de publicar.
O importante é escrever.
Uma hora amadurece.
Posso estar enganada, mas
acho que tem muito mais
bobagem publicada do que
genialidade não-publicada.

Combatendo a solidão.

Ler. Ler é importante. Continue acompanhando, prometo falar sobre uma variável do tema que você ainda não conhece. Tá, eu sei que o seu professor fala disso toda aula e que os teus colegas te cobram. Até a sua mãe? Confesso que ela é esperta, até por que mães são ótimas referências de vida e geralmente entendem de tudo, de livros á dor de barriga – que espero não ser o seu caso.
Mas não quero repetir o jargão de que a leitura muda as pessoas ou talvez leitura é conhecimento. Todo mundo já sabe disso. Imagino que até o seu cachorro Rex – garoto esperto! Pretendo ir além. Acompanhei alguns encontros do Curitiba Literária, evento promovido pela Fundação Cultural de Curitiba, e um debate me chamou a atenção. Eric Nepomuceno – jornalista e escritor brasileiro, e David Toscana - escritor mexicano, falavam de leitura.
Em suma, quem lê pela primeira vez não entende a grandeza de um livro. Nele está expressa, muitas vezes de forma oculta, a personalidade do autor. A experiência de vida traduzida em arte. A grandeza de uma obra e o sucesso de um autor é isso, seduzir pela essência, humanização, pouco importando a fantasia. E o papel de um bom leitor é descobrir os indícios de uma história oculta dentro da história transcrita, que, geralmente, é muito mais interessante.
A palavra é protagonista diante do personagem. Que frase bonita, profética! A palavra estimula os sentidos. Aqui cabe uma observação feita por Toscana, que a experiência de ler é muito mais válida que a experiência de viver. E completa, entre risos, menos literatura erótica, apesar de que um conto bem escrito te faça ver estrelas muito melhor que o namorado. E esse prazer só é gerado através da leitura.
O livro também é memória coletiva. Tudo que é escrito, produzido vira material de pesquisa para futuros historiadores. Poderemos localizar informações precisas daqui uma década, ou duas, talvez daqui um século, sobre o que fizemos no dia oito de novembro de 2007, as 23h47. Mas do que descobrir que você escutava Tchaikovsky – não conhece? Existem ótimos livros para consulta! – o cara vai poder dizer seu sentimento diante da carga dramática expressa na música.
Impressionante nada. Para sentir a guerra não basta ver as fotos ou ler relatos. Os contos, os livros descrevem a sensação, e por isso a necessidade de ler. Ler é conhecimento! Sei que prometi não dizer, foi irresistível, acredite.
O cansaço toma conta dos seus olhos, pressinto. Finalizo, então: A leitura ocupa o espaço da solidão. Um bom livro pode ser seu melhor amigo, seu confidente, a tradução dos seus sentimentos. Cria identificação ou estranhamento, traz experiências parecidas pelas já vividas por você e que te fazem lembrar bons tempos. A imaginação e a criatividade afloram.
O relógio deve ser seu aliado. A falta de tempo é desculpa dos fracos. Seu filho precisa de atenção, mas como é gostoso poder colocá-lo para dormir escutando uma bela história e perpetuando a tradição, que de fato vem de casa, da leitura.

Entre o dread e o vermelho.

Fotos da brilhante Sabrina Magalhães.

Um quase cheiro de açafrão permeava aquela Ópera de Arame, as vinte e dezenove do dia quatro de novembro. Sobre o palco, a imagem de uma borboleta – traçada entre o azul e o vermelho – tomava conta de meio céu, disputado com esboços desfigurados de personagens futuristas reforçados por sua visão iluminada em tons entre branco e caramelo. O cenário, logo abaixo, era composto por instrumentos nada convencionais.
O gracejo dissonante da figura disforme toma vida e anda pelo palco em marcha marcada pela batida do bumbo, fazendo a platéia, que até então urrava em excitação, parar e permanecer, por um breve instante, em silêncio. Um tom de quase respeito solene, diante da criatura, abismou alguns e levou outros ao delírio. O espetáculo iniciava.
A fusão entre a diversidade da percussão resultava um rito afro, um canto indígena – uma mistura sem nome e com ritmo desconhecido. O Cordel do Fogo Encantado surge, então, entre o manto negro que ocupava a lateral do palco.
Cordel como sinônimo de história. Fogo como elemento representativo da existência de um povo, a intenção musical e poética dos seus personagens, marcado, principalmente, por sua inconstância. A visão profética entre o céu e a terra define o Encantado. Tudo isso da voz de Lira Paes, o vocalista.
A colorida mistura de expectadores lotou a frente do palco. O transe psicótico provocado pela música era o ritmo da dança de algumas mulheres com seus vestidos estampados e cabelos de dread. Um vai-e-vem lento contorcia as formas de uma ruiva baixinha. Entre elas, um grupo de rapazes pulava expressando deleite.
O fogo vivo toma forma no malabarismo teatral de Lira e evoca: Perto de você, Dentro da tua história, Eu carrego as paisagens, E as miragens do além, Digo que quebro as telhas,Da nossa grande construção, Pra durmir na amplidão. Os olhos ameaçadoramente abertos do cantor e a expressão corporal desenvolvida durante o canto de poesia são os elementos principais da mística apresentação. O espetáculo, como descrito pelo grupo.
O poeta popular representa o povo, dá voz a reclames, angústias e esperanças, tudo pela literatura de cordel. No início, pequenos poemas e historinhas compunham 40min de apresentação, com mais 10 de música. Com o tempo, o Cordel do Fogo Encantado musicou os versos antes recitados e compôs a cena de tragicomédia, apresentada pelo país em eventos de literatura, principalmente, como conta Emerson Calado, percussão e voz.

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. A platéia declama, com furor, a pedido de Lira, alguns versos de Dos Três Mal-amados – Palavras de Joaquim, de João Cabral de Melo Neto. Os tons de voz fazem brilhar os olhos do vocalista, que comenta, depois, que esse é o objetivo do espetáculo. Levar a arte ao público de forma que o encante e o faça conhecer os grandes nomes da literatura brasileira. Pois o cordel é para ser ouvido e visto, sentido. Debulhar o trigo; Recolher cada bago do trigo; Forjar no trigo o milagre do pão; E se fartar de pão / Decepar a cana; Recolher a garapa da cana; Roubar da cana a doçura do mel; Se lambuzar de mel / Afagar a terra; Conhecer os desejos da terra; Cio da terra, a propícia estação; E fecundar o chão. Cantarola o público, algumas músicas depois, os versos de O Cio da Terra, de Milton Nascimento e Chico Buarque, afirmando o objetivo do grupo.

Luzes amarelas brandam a música e os ruídos da rua, verdadeira paixão de Lira, espalham-se pela multidão. A denúncia vem a tona. Religião – Os homens são anjos caídos que Deus mandou para Terra porque botaram defeito na criação do mundo. Aqui, começaram a inventar coisas, a imitar Deus. E Deus ficou zangado, mandou muita chuva e muito fogo, eu vi de perto a sua raiva sacra, pois foram sete dias de trabalho intenso, a ignorância e acomodação do povo – Sou palhaço do circo sem futuro; Um sorriso pintado a noite inteira; O cinema do fogo; Numa tarde embalada de poeira, a política – A matadeira vem chegando; no alto da favela; no balanço da justiça; do seu criador / Salitre, pólvora, enxofre, chumbo / O banquete da terra; Teatro do Céu; O banquete da terra; Teatro do Céu / Diz aí quem vem lá, O velho soldado; O que trás no seu peito?; A vida e a morte / E o que trás na cabeça?; A matadeira; E o que veio falar?; Fogo.

Mistério. A formação teatral de Lira cria o clima intimista. Seus gestos completam a música e convidam o público para o novo. A direita jovens jogam capoeira e a esquerda um homem de trinta e poucos anos faz gestos de percussão, talvez inspirado por Emerson Calado e sua influência New Metal. O ritmo toma tom com a literatura, o rezado, o toré, o blues de Robert Johnson, o samba de coco, o rito afro e a mística indígena, completa Nego Henrique, percussionista.
Foram embora. E voltaram, entre reverências da platéia, que gritava em sinal de adoração. Cumpriram um, entre os oito show programados para o mês.