A ditadura militar é um dos períodos mais fascinantes da história, em minha opinião. Tudo da época é vibrante, talvez pela alta carga emocional das músicas, das reportagens, dos personagens.
Entre 1964 e 1985 o país presenciou uma linhagem fina, perfeita, de produção cultural. As letras de protesto eram minuciosamente pensadas e executadas de forma branda, devido à censura. O protesto era esse, através da música.
Os Festivais de Música Brasileira lançaram diversos artistas, como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
O Bêbado e a Equilibrista é dessa época. Uma parceria entre Aldir Blanc e João Bosco, interpretada por Elis Regina.
Em 1972, o show em homenagem ao sesquicentenário da independência, organizado pelos militares, teve a participação de Elis. Isso a levou ao ‘cemitério dos morto-vivos’, seção de quadrinhos no Pasquim, do cartunista Henfil.
A seção promovia o enterro de personalidades que de alguma forma aderiam ao regime. Junto com Elis, foram enterrados Clarice Lispector, Drummond de Andrade e alguns atores, como Tarcísio Meira, Glória Menezes e Marília Pêra.
Alguns anos mais tarde, Elis e Henfil tornaram-se grandes amigos, e ela aderiu à campanha pela anistia, representada pela interpretação de O Bêbado e a Equilibrista.
Caía a tarde feito um viaduto (1)
E um bêbado (2) trajando luto (3) me lembrou Carlitos (4)
A lua (5) tal qual a dona do bordel (6)
Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
E nuvens (9) lá no mata-borrão (10) do céu (11)
Chupavam manchas (12) torturadas (13), que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil (14)
Pra noite do Brasil (15), meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
Com tanta gente que partiu (17) num rabo-de-foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses (18) no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista (19)
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
(1) O viaduto da Gameleira,
(2) O bêbado representa os artistas, poetas, músicos e ‘loucos’ em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.
(3) Referência aos militantes de esquerda que ‘sumiram’.
(4) Charles Chaplin.
(5) A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.
(6) A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.
(7) As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.
(8) O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que ultrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.
(9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis.
(10) O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime.
(11) As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.
(12) Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma indisciplina.
(13) Referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.
(14) Os artistas nunca se calaram. Essa música é uma das irreverências.
(15) Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite.
(16) O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.
(17) Referência aos exilados políticos.
(18) Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.
(19) A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares, tinha sua existência ameaçada.
13 comentários:
Essa é uma das minhas músicas preferidas! E ela é um espetáculo! Cada vez que você lê a letra imagina algo diferente e Elis cantando - quase num choro - é de arrepiar...
Muito bom Andy!
Sim, Elis é uma diva! Achei um cd dela, só com as melhores (se é que ela cantou alguma coisa ruim), é maravilhoso.
Também é uma das minhas favoritas! =)
Beijo beijo
Andy, tentei um bobado interpretar essa música e tive dificuldades. Como vc fez essa pesquisa?
Meus parabéns, Lucca.
Se Elis Regina é uma deusa ? é obviu! Porque mesmo com as dificuldades da época ela ultrapassou barreiras soltando a sua belíssima voz para contrariar a política da época. Outros cantores tambem soltaram a voz e mandaram ver, mas na minha opinião a música que melhor se encaixa contrariando a época e que mais fez sucesso foi a de Elis Regina!!!
e claro q a Elis Regina merece mto do credito
mas nao se esquesam, joão bosco e aldir blanc
e que implantaram toda a ideia e que criou as metaforas o papel da elis regina foi apenas cantar e interpretar a musica
mas a ideia veio dos
compositores
;D
Gostaria que o autor desse texto me passasse seu email para maiores informações sobre esse texto. O meu email é milene.ilha@gmail.com
Obrigada!
A lua na verdade fala da rede globo que apioiou a ditadura fazendo e divulgando aquilo que os politicos queriam!
Isso mesmo. A lua é a rede Globo. Tenho toda a interpretação desta música.
mas cade os artistas para denunciar as roubalheiras desse governo "democratico".que vivemos. Governo esse que continua cometendo atrocidades com o povo,desviando dinheiro públic etc.e que transformou nosso país nessa nojeira.
Eu gostaria de saber okê mudou dakele regime militar para esse regime ditatorial disfarçado desse Lula?
Adorei a explicação. Parabéns pelo blog. Voltarei mais vezes aqui!
Adorei a explicação. Parabéns pelo blog. Voltarei mais vezes aqui!
Muito boa a sua análise ! Parabéns pelo trabalho ! Obrigada pela ajuda !
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