sábado, 19 de janeiro de 2008

O Bêbado e a Equilibrista.

A ditadura militar é um dos períodos mais fascinantes da história, em minha opinião. Tudo da época é vibrante, talvez pela alta carga emocional das músicas, das reportagens, dos personagens.
Entre 1964 e 1985 o país presenciou uma linhagem fina, perfeita, de produção cultural. As letras de protesto eram minuciosamente pensadas e executadas de forma branda, devido à censura. O protesto era esse, através da música.
Os Festivais de Música Brasileira lançaram diversos artistas, como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
O Bêbado e a Equilibrista é dessa época. Uma parceria entre Aldir Blanc e João Bosco, interpretada por Elis Regina.
Em 1972, o show em homenagem ao sesquicentenário da independência, organizado pelos militares, teve a participação de Elis. Isso a levou ao ‘cemitério dos morto-vivos’, seção de quadrinhos no Pasquim, do cartunista Henfil.
A seção promovia o enterro de personalidades que de alguma forma aderiam ao regime. Junto com Elis, foram enterrados Clarice Lispector, Drummond de Andrade e alguns atores, como Tarcísio Meira, Glória Menezes e Marília Pêra.

Alguns anos mais tarde, Elis e Henfil tornaram-se grandes amigos, e ela aderiu à campanha pela anistia, representada pela interpretação de O Bêbado e a Equilibrista.


Caía a tarde feito um viaduto (1)
E um bêbado (2) trajando luto (3) me lembrou Carlitos (4)
A lua (5) tal qual a dona do bordel (6)
Pedia a cada estrela fria (7) um brilho de aluguel (8)
E nuvens (9) lá no mata-borrão (10) do céu (11)
Chupavam manchas (12) torturadas (13), que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil (14)
Pra noite do Brasil (15), meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil (16)
Com tanta gente que partiu (17) num rabo-de-foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses (18) no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista (19)
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

(1) O viaduto da Gameleira, em BH. Obra do governo que desabou sobre carros e ônibus, matando muita gente, porém nada foi noticiado e ninguém foi indenizado.
(2) O bêbado representa os artistas, poetas, músicos e ‘loucos’ em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.
(3) Referência aos militantes de esquerda que ‘sumiram’.
(4) Charles Chaplin.
(5) A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.
(6) A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.
(7) As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.
(8) O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que ultrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.
(9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis.
(10) O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime.
(11) As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.
(12) Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma indisciplina.
(13) Referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.
(14) Os artistas nunca se calaram. Essa música é uma das irreverências.
(15) Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite.
(16) O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.
(17) Referência aos exilados políticos.
(18) Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.
(19) A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares, tinha sua existência ameaçada.

13 comentários:

Sheila Gorski disse...

Essa é uma das minhas músicas preferidas! E ela é um espetáculo! Cada vez que você lê a letra imagina algo diferente e Elis cantando - quase num choro - é de arrepiar...
Muito bom Andy!

Andressa Berkenbrock disse...

Sim, Elis é uma diva! Achei um cd dela, só com as melhores (se é que ela cantou alguma coisa ruim), é maravilhoso.
Também é uma das minhas favoritas! =)
Beijo beijo

Anônimo disse...

Andy, tentei um bobado interpretar essa música e tive dificuldades. Como vc fez essa pesquisa?
Meus parabéns, Lucca.

Anônimo disse...

Se Elis Regina é uma deusa ? é obviu! Porque mesmo com as dificuldades da época ela ultrapassou barreiras soltando a sua belíssima voz para contrariar a política da época. Outros cantores tambem soltaram a voz e mandaram ver, mas na minha opinião a música que melhor se encaixa contrariando a época e que mais fez sucesso foi a de Elis Regina!!!

allef disse...

e claro q a Elis Regina merece mto do credito
mas nao se esquesam, joão bosco e aldir blanc
e que implantaram toda a ideia e que criou as metaforas o papel da elis regina foi apenas cantar e interpretar a musica
mas a ideia veio dos
compositores

;D

Milene disse...

Gostaria que o autor desse texto me passasse seu email para maiores informações sobre esse texto. O meu email é milene.ilha@gmail.com

Obrigada!

Anônimo disse...

A lua na verdade fala da rede globo que apioiou a ditadura fazendo e divulgando aquilo que os politicos queriam!

Anônimo disse...

Isso mesmo. A lua é a rede Globo. Tenho toda a interpretação desta música.

Anônimo disse...

mas cade os artistas para denunciar as roubalheiras desse governo "democratico".que vivemos. Governo esse que continua cometendo atrocidades com o povo,desviando dinheiro públic etc.e que transformou nosso país nessa nojeira.

Anônimo disse...

Eu gostaria de saber okê mudou dakele regime militar para esse regime ditatorial disfarçado desse Lula?

Vanessa disse...

Adorei a explicação. Parabéns pelo blog. Voltarei mais vezes aqui!

Vanessa disse...

Adorei a explicação. Parabéns pelo blog. Voltarei mais vezes aqui!

Anônimo disse...

Muito boa a sua análise ! Parabéns pelo trabalho ! Obrigada pela ajuda !